RESUMO: O estudo propõe uma análise sobre a decisão proferida em sede de julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n° 1309642, que firmou o Tema 1236 de Repercussão Geral frente a disposição do artigo 1.641, II do Código Civil 2002. A pesquisa tem como objetivo destacar como essa decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) evidenciou o etarismo presente no ordenamento jurídico brasileiro, destacando clara violação dos direitos à dignidade da pessoa humana, à autonomia e à igualdade do casal. Ademais, busca abordar os aspectos jurídicos, sociais e econômicos relacionados à imposição dessa restrição legal. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, com estudo de artigos, teses, doutrinas e normas jurídicas, além da pesquisa documental. Logo, este estudo não apenas contribui para o debate acadêmico, mas também fornece subsídios relevantes para reflexões e possíveis reformas legais que busquem assegurar o pleno exercício dos direitos e garantias individuais no âmbito das relações matrimoniais.
Palavras-chave: Separação obrigatória de bens; Pessoas idosas; Direitos constitucionais; Jurisprudência.
ABSTRACT: The study at hand proposes an analysis of the decision rendered in the judgment of the Appeal in Extraordinary Resource (ARE) No. 1309642, which established General Repercussion Theme 1236 against the provision of article 1.641, II of the Civil Code 2002. The article aims to highlight how this decision by the Federal Supreme Court (STF) showcased the violation of rights to human dignity, autonomy, and equality of the betrothed, and to address the legal, social, and economic aspects related to the imposition of this legal restriction which demonstrated ageism present in the Brazilian legal system. The methodology used was bibliographic research, studying articles, theses, doctrines, and legal norms, in addition to documentary research. Therefore, this study not only contributes to academic debate but also provides relevant subsidies for reflections and possible legal reforms that seek to ensure the full exercise of individual rights and guarantees within the scope of matrimonial relations.
Keywords: Mandatory separation of assets; Elderly people; Constitutional rights; Jurisprudence.
No contexto do ordenamento jurídico brasileiro, é perceptível a complexidade advinda da multiplicidade de normas que o compõem. Essa diversidade normativa resulta em uma rede intricada de relações, cuja interação pode demandar uma hierarquia bem definida para garantir o funcionamento ideal do sistema jurídico (Bobbio, 2014).
Essa dinâmica resulta da intrínseca relação entre o direito e a sociedade, que são entidades inextricavelmente interligadas. O direito surge e se desenvolve dentro do contexto social, enquanto a sociedade é simultaneamente uma fonte geradora e um campo de atuação do direito. Nesse sentido, é imperativo que o ordenamento jurídico reflita as particularidades e as demandas sociais para garantir sua legitimidade e eficácia (Nader, 2016).
Nessa senda, diante do progresso social, especialmente no que diz respeito ao aumento da expectativa de vida da população nas últimas décadas, tornou-se imperativo reavaliar a autonomia dos indivíduos com mais de 70 anos. Se reconhecemos que esses indivíduos são capazes de tomar decisões importantes em outras esferas de suas vidas, não caberia ao ordenamento jurídico ignorar essa capacidade neste momento específico.
Diante disso, a discussão sobre o regime de bens deve ser abordada considerando sua natureza constitucional, em meio à controvérsia em torno da validade do artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002. Este artigo estabelece a obrigatoriedade do regime de separação de bens para pessoas com mais de setenta anos em casamentos, bem como a aplicação dessa regra às uniões estáveis. Esta é uma questão de relevância social, jurídica e econômica, que transcende os interesses individuais das partes envolvidas no caso.
Nesse sentido, este artigo tem como objetivo analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) n° 1309642, relacionado ao Tema 1236, que afastou a aplicação da separação obrigatória de bens para pessoas idosas septuagenárias, conforme o artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002. O artigo busca examinar como essa decisão evidenciou a violação dos direitos à autonomia e à igualdade, além de abordar os aspectos jurídicos, sociais e econômicos envolvidos na imposição dessa restrição legal. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, com estudo de artigos, teses e doutrinas, estudo de normas jurídicas tais como: leis ordinárias; decretos e resoluções, bem como pesquisa documental.
O regime matrimonial, conforme aduzido por Tartuce (2017), pode ser conceituado como sendo o conjunto de regras de ordem privada relacionadas com interesses patrimoniais ou econômicos resultantes da entidade familiar.
Portanto, a compreensão da temática em seu viés histórico é demasiado importante, tendo em vista que a formação das entidades familiares e a proteção patrimonial de bens que englobam a seara do casamento tomaram diferentes proporções conforme o contexto a que está inserida.
Nesse interim, é importante destacar que os regimes de bens do direito brasileiro possuem origens germânicas, tendo em vista o tratamento com fulcro na igualdade entre os nubentes trazido pelos costumes ibéricos e Francos, segundo disserta Vasconcelos (2007, p. 111).
O Código Civil de 1916 trouxe em seu bojo, como regime matrimonial legal, a comunhão universal de bens, em que todos os bens do casal, sejam pretéritos ao casamento ou constituídos durante o desenrolar da relação, pertencem igualmente, na proporção de 50% a cada cônjuge.
Contudo, ainda que houvesse uma perspectiva de isonomia patrimonial no regime de bens legal da época, a sociedade era marcada por um momento patriarcal, em que o homem casado era o chefe da família e a mulher casada era uma pessoa relativamente incapaz (Brasil, 1916).
E a partir da insatisfação em razão desse tratamento diferenciado entre homens e mulheres foram criadas algumas legislações importantes como a Lei n° 4.121/ 62, conhecida como Estatuto da Mulher Casada e a Lei n° 6.515/77, trazendo a alteração do regime legal para o da comunhão parcial de bens.
Nesse sentido, é salutar mencionar que com a vigência da CRFB/88, não foram recepcionados os artigos do Código Civil 1916 que discorriam sobre a superioridade do marido sobre a mulher e adoção de direitos e obrigações diferentes de acordo com o sexo, sendo que um dos princípios norteadores da CRFB/88 a igualdade entre homem e mulher.
O Código Civil brasileiro de 2002, resultante do Projeto de Lei n° 634-B, é emblemático ao refletir os ideais de igualdade de gênero consagrados na CRFB/1988. Ao manter o regime de comunhão parcial de bens, o código reitera um avanço em relação ao CC/1916. Contudo, suas disposições não são isentas de controvérsias, especialmente a imposição do regime obrigatório de separação de bens para indivíduos com mais de setenta anos, uma temática central nesta análise.
É fundamental salientar que, embora o código tenha entrado em vigor em 2003, sua origem remonta a um Projeto de 1975, o que evidencia defasagens já desde sua promulgação. A necessidade de revisão de mais de 100 artigos tornou-se evidente, destacando-se a natureza patrimonial do código. Assim, tornou-se imperativo submeter o código a reformas adicionais para adequá-lo às demandas contemporâneas.
Por isso, é fundamental compreender os princípios que regem o direito brasileiro e a instituição do casamento para uma análise mais profunda das controvérsias em torno da previsão legislativa relativa ao regime matrimonial obrigatório para maiores de sessenta anos. Esta compreensão contextualiza tanto os debates legislativos quanto as decisões judiciais contemporâneas que serão exploradas posteriormente.
O princípio da dignidade da pessoa humana para Nunes Junior (2023, p.389) “trata-se da fonte de todos os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Se o ser humano é titular de direitos e garantias, é por que deve ser tratado dignamente.”
Dessa maneira, o princípio em questão deve ser interpretado em todos os ramos da ordem jurídica, inclusive no direito privado, promovendo releituras das normas e impedindo a ocorrência de decisões aberrantes. A interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana deve ser realizada de modo a não violar o valor intrínseco da pessoa, incluindo sua moral, honra, autoridade e dignidade que inspira respeito.
A violação da dignidade da pessoa humana ocorre quando há desrespeito à pessoa enquanto sujeito de direitos e à própria vida, comprometendo sua dignidade. Nesse contexto, isso se manifesta na desconsideração da autonomia e liberdade do indivíduo.
Nesse diapasão, torna-se insofismável a discursão sobre obrigar os idosos acima de 70 anos a se casarem com o regime de separação obrigatória de bens, uma vez que ocasiona uma distinção utilizando-se o critério da idade como fundamento da imposição gerando uma discriminação aos idosos.
Nessa mesma linha de pensamento, Paulo Luiz Netto Lôbo (2003, p. 242-243, grifo nosso) aborda a questão da obrigatoriedade da separação de bens para maiores de 70 anos em sua obra, destacando que:
hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-la à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente, é inconstitucional esse ônus.
O ordenamento jurídico é uma ferramenta de proteção para o povo, mas precisa realizar seus atos evitando distinções e evoluindo junto com a sociedade. Evidenciando-se que a idade avançada não significa discernimento reduzido, portanto, não deve ser o argumento utilizado para impor uma distinção.
Destarte, a imposição legislativa ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, dentro do viés da dignidade, vez que as pessoas idosas septuagenárias possuem a plena capacidade mental de tomar suas próprias decisões e escolher o regime de bens que desejar, assim, respeitando sua autonomia e liberdade.
A autonomia da vontade concede às pessoas uma ampla liberdade para assumir compromissos, constituindo-se como princípio que resguarda os indivíduos da intervenção ilegítima por parte do Estado. Este princípio é embasado na premissa da vontade autônoma, livre e desembaraçada, aquém da liberdade de ação dos sujeitos, conforme aduz Fiuza (2015).
Assim, a imposição da separação obrigatória de bens para pessoas maiores de 70 anos viola diretamente o princípio da autonomia da vontade. Ao impor um regime patrimonial específico com base unicamente na idade dos indivíduos, o ordenamento jurídico desconsidera a capacidade dessas pessoas de tomar decisões autônomas e conscientes sobre suas relações familiares e patrimoniais, ou seja, estamos diante de uma situação de ageísmo, também conhecido como etarismo e idadismo, que ocorre quando há discriminação e o preconceito em razão da idade das pessoas. Esse termo é originário da palavra ageism, criada em 1969 pelo norte-americano Robert Neil Butler (Moragas, 2022). Tal imposição reduz a liberdade de escolha dos idosos, negando-lhes a possibilidade de optar por um regime que melhor se adeque às suas necessidades e preferências individuais. Dessa forma, ao restringir a autonomia da vontade das pessoas maiores de 70 anos, a imposição da separação obrigatória de bens não apenas desrespeita seus direitos individuais, mas também compromete a eficácia e a justiça do sistema jurídico como um todo.
Diante dessas considerações, podemos inferir que utilizar os idosos como meio para atender aos interesses dos herdeiros contraria o princípio da autonomia. Nesse contexto, Barroso destaca que: “Além disso, utilizar a idade como elemento de desequiparação entre as pessoas é vedado pela Constituição Federal, sendo ilegítimo, uma vez que são pessoas maiores e capazes. Considero que a interpretação que dê cogência a esse dispositivo seja inconstitucional” (Assessoria de Comunicação do IBDFAM, 2024, n.p).
Nesse sentido, Tartuce (2024) aduz sobre o artigo 1.641 do Código Civil que
Em relação ao seu inciso II, sempre foi forte a corrente doutrinária que sustenta a sua inconstitucionalidade, por trazer situação discriminatória ao idoso, tratando-o como incapaz para o casamento. Tem-se afirmado que tal previsão não visa a proteger o idoso, mas seus herdeiros, tendo feição estritamente patrimonialista, na contramão da tendência do Direito Privado contemporâneo, de proteger a pessoa humana (Tartuce, 2024, n.p, grifo nosso).
No contexto atual do Direito Privado, é fundamental reconhecer a importância da proteção dos direitos individuais, especialmente no que diz respeito ao casamento. Ao impor a separação obrigatória para pessoas maiores de 70 anos, não apenas se desconsidera a dignidade e a autonomia desses indivíduos, mas também se vai de encontro à tendência contemporânea de salvaguardar esses direitos fundamentais. É crucial que o ordenamento jurídico promova uma abordagem que respeite a capacidade de autodeterminação das pessoas idosas e reconheça sua plena cidadania, ao invés de perpetuar práticas que as relegam a uma condição de incapacidade presumida.
Inicialmente, no Código Civil de 1916, o regime de separação obrigatória de bens era aplicado apenas aos homens com mais de 60 anos e às mulheres com mais de 50 anos. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, houve uma padronização da idade para todos os gêneros, estabelecendo-se o limite de 70 anos. Essa uniformização reflete uma interpretação alinhada com os princípios constitucionais de isonomia, garantindo que a aplicação do regime de separação obrigatória de bens seja baseada na idade de pelo menos uma das partes envolvidas na união.
Portanto, de acordo com o Código Civil de 2002, basta que uma das partes tenha completado 70 anos para que esse regime seja automaticamente aplicado, promovendo assim uma abordagem mais igualitária e neutra em relação às idades dos cônjuges ou conviventes (Gonçalves, 2018, p.465).
As situações nas quais o regime de separação de bens no casamento é obrigatório, conforme o Código Civil (CC/02), são detalhadamente delineadas no artigo 1.641. Este dispositivo estabelece que:
É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I- das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II- da pessoa maior de setenta anos (redação de acordo com a Lei n° 12.344, de 9 – 12 – 2010); III- de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial (Brasil, 2002, grifo nosso).
Por se tratar de regime imposto por lei, não é preciso o pacto antenupcial (Gonçalves, 2018, p.464). Isto posto, Gonçalves (2013, p.467) exegese que a imposição “mostra-se evidente o intuito de proteger certas pessoas que, pela posição que se encontram, poderiam ser vítimas de aventureiros interessados em seu patrimônio”.
Nesse sentido, Regina Beatriz Tavares da Silva, atualizadora do livro Curso de direito civil de Washington de Barros Monteiro (2004, p.218) diz que:
Como bem justificou o Senador Josaphat Marinho na manutenção do art. 1641, n. II, do atual Código Civil, trata-se de prudência legislativa em favor das pessoas e de suas famílias, considerando a idade dos nubentes. Conforme os anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de setenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras.
Em sentido contrário manifesta João Batista Villela (1980, p.35) que entende que “a proibição, na verdade, é bem um reflexo da postura patrimonialista do Código e constitui mais um dos ultrajes gratuitos que a nossa cultura inflige na terceira idade”.
Fiuza (2016) aduz que a constitucionalidade do regime de separação de bens é discutível e que representa uma capitis deminutio aos maiores de 70 anos, vez que os trata como pessoas incapazes e que difere da realidade. O real interesse da legislação brasileira deve ser a capacidade de consciência do indivíduo não importando sua idade. Diante da consciência, ato é válido.
Além disso, Caio Mário da Silva Pereira (2004, p.194), na obra atualizada por Tânia da Silva Pereira, sustenta que a restrição em questão “não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nessas faixas etárias, certo também que todas as idades o mesmo pode existir”.
Há alguns anos, era perceptível a expressão doutrinária que apontava para a inconstitucionalidade dessa disposição. Nesse contexto, o Enunciado n° 125 da I Jornada de Direito Civil, proposto em 2003, sugeriu a revogação desse dispositivo. As justificativas apresentadas foram:
A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, inc. III, da CF/1988). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses (Conselho da Justiça Federal, 2023, grifo nosso).
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início a um julgamento em outubro de 2023, o qual chegou à sua conclusão durante a tarde da última quinta-feira, 1º de fevereiro de 2024, marcando assim o primeiro encontro plenário do Ano Judiciário de 2024. A análise dessa decisão foi considerada imperativa, visto que
Ementa: Direito Constitucional. Recurso extraordinário com agravo. Regime de bens aplicável no casamento e na união estável de maiores de setenta anos. 1. Possui caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.641, II, do CC/02, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos, e da aplicação dessa regra às uniões estáveis. 2. Questão de relevância social, jurídica e econômica que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. 3. Repercussão geral reconhecida (Brasil. Supremo Tribunal Federal – ARE 1309642 RG, Relator(a): Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 30-09-2022, Processo eletrônico DJe-041 Divulgado 03-03-2023, publicado 06-03-2023, grifo nosso).
Nesse sentido, o aspecto social se revela significativo, uma vez que a determinação do regime de bens aplicável às uniões familiares entre indivíduos com mais de setenta anos tem implicações diretas na estrutura da sociedade brasileira; o aspecto jurídico também é relevante, pois a questão está relacionada à interpretação e à extensão das normas constitucionais que garantem uma proteção especial às pessoas idosas; e o aspecto econômico não pode ser negligenciado, uma vez que a tese estabelecida terá impacto direto nos regimes patrimoniais e sucessórios de indivíduos com mais de setenta anos (Brasil. Supremo Tribunal Federal – ARE 1309642 RG, Relator(a): Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 30-09-2022, Processo eletrônico DJe-041 Divulgado: 03-03-2023, publicado: 06-03-2023).
Podemos afirmar que a discussão durante o julgamento destacou predominantemente dois pontos essenciais. De um lado, havia a discussão sobre questões patrimoniais; do outro, a questão da autonomia, dignidade e igualdade dos indivíduos com mais de 70 anos. Em relação ao primeiro ponto, a discussão estava centrada em aspectos previamente defendidos pelo Código Civil, que tinha como objetivo impedir a comunicação patrimonial em uniões familiares formadas sem bases afetivas consistentes, especialmente aquelas compostas por pessoas idosas e outras que visavam principalmente vantagens econômicas. Nesse contexto, a intenção era proteger tanto o direito de propriedade dos indivíduos com mais de setenta anos quanto o direito à herança de potenciais herdeiros, ambos garantidos nos termos do artigo 5º, incisos XXII e XXX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988).
Por outro lado, em desfavor da constitucionalidade da norma, argumentou-se que ao presumir de forma absoluta a incapacidade dos maiores de setenta anos para decidir sobre o regime patrimonial aplicável às uniões familiares que contraírem, a regra interferia na autonomia desses indivíduos, sendo esse um aspecto essencial da dignidade humana (artigo 1º, III, da CRFB/1988). Considerando o aumento da expectativa de vida da população nas últimas décadas, a aplicação dessa regra poderia potencialmente impedir que indivíduos plenamente conscientes tomassem decisões conscientes sobre suas implicações. Assim, houve uma tensão entre os dispositivos que proíbem a discriminação contra idosos, protegem as uniões estáveis e estabelecem o dever de amparo às pessoas idosas (artigos 3º, IV, 226, § 3º, e 230, da CRFB/1988).
Considerando esses elementos, Barroso sugeriu uma interpretação alinhada com a CRFB/1988 para o artigo 1.641, inciso II do Código Civil de 2002, atribuindo-lhe uma interpretação que o torne uma norma de caráter facultativo. Desta forma, busca-se realçar os princípios da autonomia, dignidade da pessoa humana e não discriminação.
Considerando que, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) n° 646.721, relatado pelo Ministro Luís Roberto Barroso e julgado em 10 de maio de 2017, “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do Código Civil de 2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo 1.829 do Código Civil de 2002”, as decisões tomadas no contexto do casamento também serão aplicáveis à união estável. Barroso argumenta que quanto a essa jurisprudência, ela: “Deve prevalecer a falta de convenção das partes em sentido diverso, mas que pode ser afastada por vontade dos nubentes, dos cônjuges ou dos companheiros, ou seja, trata-se de regime legal facultativo” (Migalhas,2024, n.p).
Por meio da decisão unânime no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) n° 1309642, relacionado ao Tema 1236, rejeitou o recurso e estabeleceu que, nos casos de casamentos e uniões estáveis envolvendo indivíduos com mais de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser renunciado mediante declaração expressa das partes por meio de escritura pública.
Assim, por meio da técnica jurídica conhecida como interpretação conforme a Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o regime de separação legal de bens é o padrão aplicável para indivíduos com mais de setenta anos, a menos que o próprio indivíduo estabeleça um pacto antenupcial optando por um regime diferente. Em caso de casamento, essa escolha deve ser formalizada por meio de escritura pública; enquanto, para uniões estáveis, é necessário um contrato de convivência, também elaborado por escritura pública.
Portanto, a imposição da exigência de separação de bens em casamentos envolvendo pessoas com mais de 70 anos é considerada uma violação ao princípio da dignidade humana. Tal medida impede que indivíduos plenamente conscientes de suas escolhas determinem o destino de seus próprios bens, enquanto também desvaloriza os idosos ao tratá-los como meros instrumentos para salvaguardar os interesses dos herdeiros em relação ao patrimônio. Além disso, essa regra cria uma discriminação injustificada com base na idade, contrariando o disposto no artigo 3º, inciso IV, da CRFB/1988.
Dessa forma, percebe-se que os regimes de bens não apenas determinam a maneira pela qual os problemas decorrentes da dissolução do casamento serão resolvidos, mas também estabelecem as diretrizes para a condução do casamento pelos cônjuges durante sua existência, conforme observado por Vasconcelos (2007). Diante disso, com a jurisprudência do STF, nos casos de casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas com mais de 70 anos, a aplicação do regime de separação de bens pode ser dispensada caso haja acordo mútuo entre o casal.
Nessa circunstância, é necessário formalizar a adoção de um novo regime por meio de escritura pública, registrada em cartório, ou mediante manifestação perante o juiz, para aqueles já casados.
Salienta-se que, a modificação acarretará impactos exclusivamente na partilha patrimonial a partir do momento da mudança, não incidindo retroativamente sobre o período anterior do relacionamento, quando prevalecia o regime de separação de bens, ou seja, não é possível a reabertura de processos de sucessão já ocorridos garantindo assim a segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
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Artigo Publicado na Revista Eletrônica Norte Mineira de Direito – Erga Omnes